quarta-feira, junho 22, 2005

“Só um anormal é capaz de fazer algo assim!”

Acompanhadas por uma edulcorada e amenosa melodia aviculária que se propagava com uma sublime acústica pendiam do páramo postimeiras patilhas aurífluas; e adornadas por excelsas flores que primorosos e policromáticos ramilhetes em conceptáculos diáfanos compunham; e aromatizadas por tenros e macios frutos que se ofereciam à mesa telúrica e que sabiam a pitanças naturais; e ritmadas pelo quebrar de poéticas ôndulas na borda-mar; e emolduradas pelo éter; e sugadas por mosquitos, por muitos mosquitos, mosquitos pra cacete... nuvens intermináveis de mosquitos assustadores, furiosos e barulhentos...

Que coisa!

O homem levou não sei quantos milhões de anos para inventar todo o conforto que hoje pode ter com o simples premir de um botão e se apraz fazendo programas em que, para não ser devorado por ferocíssimas muriçocas, precisa passar na pele algum preparado capaz de intoxicar um rinoceronte em poucos segundos, e, ainda, tem de usar protetor de ouvido para não ouvir milhares de zumbidos por segundo!

A insensatez humana tem, sem dúvida, dimensões galáticas mas, para compensar, o bom-senso do ser humano é regido por regras galaticamente insensatas.

Outro exemplo prático: quantos anos levou o homem para conseguir chegar à colher e ao garfo?, no entanto, toda vez que vai a restaurante japonês se sente na obrigação de usar hashi (e de beber saquê)!

E há coisas piores, e muito piores! Quem não gasta um monte de horas de viagem para aproveitar as poucas de folga sendo vampiristicamente sugado por tenebrosos fincudos enquanto aprecia postimeiras patilhas aurífluas... ou não vai a restaurante japonês para usar hashi, delicia-se espremido num fiapo de areia tórrida, um braseiro que nem picanha sem pedigree encara, ou se diverte enfrentando riscos tão grandes que, por bem menos, houve a primeira e única greve leonina da história, lá no Coliseu – e com cem por cento de adesão leônica –, ou se deleita fazendo um esforço descomunal em trilhas que jumento que passou, e com louvor, por todos os jumentais testes de resistência e durabilidade não se atreve a arrostar, ou vai ao shopping e se mete na fila para estacionar o carro, e na fila para comprar uma coisa que todo mundo está comprando, e na fila para comer algo que todo mundo está comendo, e na fila para beber um troço que todo mundo está bebendo, e na fila para dar uma mijadinha – e o sujeito não está imitando ninguém dessa vez –, e, por derradeiro, na fila para conseguir ir embora...

Cá entre nós, trocar cama ampla e aconchegante por saco de dormir e chão duro, trocar chuveiro com água quente e sabonete por jato de água gelada e bucha, trocar as cinco ou seis marchas do moderníssimo veículo por uma caminhada capaz de derrear o jumento mais resistente, trocar a deliciosa refeição que acabou de sair das mãos daquela boa e velha cozinheira por um sanduíche de pão dormido com presunto já quase fora do prazo de validade, trocar o ambiente com ar condicionado por uma aventura na boca de um vulcão prestes a entrar em erupção, trocar o edredão duplo e o quarto tépido por alguma empreitada a vinte ou trinta graus abaixo de zero, trocar o sossego do lar pelos perigos da rua e pelos congestionamentos do shopping... cá entre nós... isso não pode ser considerado um bom sinal!

Cá entre nós... quem gosta de viver assim é capaz de fazer qualquer outra coisa!, e só mesmo alguém com a burrice declarada na certidão de nascimento, formado em estupidez, mestrado em idiotismo e doutorado em parvidade, só mesmo um débil mental e debilidade que qualquer aprendiz de auxiliar de paramédico consegue perceber, diante dessas conhecidas e freqüentes atitudes do ser humano “normal” em horas tranqüilas e prazenteiras, acredita que só os “anormais” são capazes dos ensandecidos, tétricos e desonestos comportamentos que a imprensa cotidianamente noticia.

Ah... já sei... você vai, no próximo fim de semana, e só com a água de um cantil, escalar os não sei quantos mil metros de uma íngreme, escarpada, inóspita, terrível, assustadora e rochosa montanha, e na escalada estará sujeito a condições de temperatura e pressão que estão montanhosamente distantes das tropicais, e correrá riscos abismais a cada centímetro, e, ao chegar ao topo, com ventos de 200 km/h, de lá vai pular numa asa-delta experimentalmente minúscula e feita com um material levíssimo cuja resistência ninguém ainda sabe qual é, e está me convidando para participar da aventura?!

E, na segunda-feira, você vai acordar, se espreguiçar e, enquanto estiver tomando seu café da manhã, lerá as manchetes dos jornais e, depois, dirá espantada e conspicuamente: “Só um anormal é capaz de fazer algo assim!”.