sábado, junho 11, 2005

“O Processo” e o termo kafkiano

Ele não se havia chocado, até então, tão profundamente, com tamanha densidade, ainda não tinha tido um baque que tanto abalasse sua crença na “Coerência Mínima”, e esse era o nome que dava a derradeira bóia que, inclusive, carinhosamente chamava de “Mínima”, e a que impediria o afogamento no momento de maior agitação das águas. Para ele, ela era aquela garantia insuperável que estaria intacta e disponível quando nenhuma outra se mostrasse útil. E confiava de forma irrestrita na “Mínima”.

Depois de anos e mais anos vivendo no mar, candidatou-se e foi aprovado com louvor para o cargo de Mestre de Remo, na Administração do Recanto Jubiloso, um dos Recantos da Federação Ilhéu.

Era a Federação Ilhéu um lugar exótico, muito exótico, pessoas, fauna, flora, e assim era o Recanto Jubiloso, e ele sabia, mas não imaginava até onde ia esse exotismo.

Já ouvira falar o Mestre de Remo de um livro chamado “O Processo” e do termo kafkiano, mas eram de uma terra semota, bem semota.

Assim que assumiu o cargo de Mestre de Remo, soube que Mestre de Vela e Mestre de Navegação ganhavam “um abono em razão do tempo de atividade marítima anterior à nomeação, desde que não exercida cumulativamente com qualquer outra função na Administração da Federação Ilhéu”, e abono conferido por uma regra da legislação do Recanto Jubiloso, exatamente onde exercicia seu ofício o Mestre de Remo, e regra chamada regra-condessa, e o motivo desse nome veremos no próximo parágrafo.

Soube, também, o Mestre de Remo que a Lei Rainha, que assim era chamada a mais importante de todas as leis da Federação Ilhéu, continha uma regra, por conseguinte regra-rainha, que determinava “que os vencimentos do cargo de Mestre de Remo fossem iguais aos dos cargos de Mestres de Vela e de Navegação”.

De imediato, como tinha muitos anos de atividade marítima exercida antes de ser nomeado Mestre de Remo e não a exercera cumulativamente com qualquer outra função na Administração da Federação Ilhéu, valendo-se referida regra-rainha, o Mestre de Remo à Administração do Recanto Jubiloso pediu que lhe fosse conferido o referido abono, e se iniciou o Devido Trâmite.

E passou-se muito tempo até que a decisão chegasse ao Mestre de Remo e lhe negava a Administração do Recanto Jubiloso o aludido abono e a negação fundava-se em um único argumento:

“Havia regra-condessa a conceder expressamente o abono citado a Mestre de Vela e a Mestre de Navegação e não existia regra equivalente, ou seja, regra-condessa que o concedesse a Mestre de Remo.”

E, na decisão, nem, ao menos, uma palavra sobre a razão que havia levado o decididor a considerar inútil, imprestável, inservível a regra-rainha brandida pelo Mestre de Remo!

Ficou deveras abismado o Mestre de Remo e pediu socorro à “Coerência Mínima” e, pela primeira vez, a “Mínima” deixou-o ainda mais confuso... Valia-se da “Mínima”, relia a regra-rainha e desabava num mar de dúvida, tragado por uma forte corrente de incoerência.

E seguia martelando-lhe o bestunto a regra-rainha: para que serviria? qual seria o seu sentido? por que teria sido escrita? E a “Mínima” não o ajudava a encontrar respostas, e ficou tão atônito que começou mesmo a duvidar de sua sanidade mental e a questionar até sua alfabetização.

E obsessivamente lia, e relia e tornava a ler a regra-rainha, e nada, nenhuma resposta surgia.

Entretanto, a “Mínima” deu-lhe uma colher de chá ao fazê-lo lembrar-se de recorrer aos doutos e aos jurisconsultos, o que ele imediatamente fez, devorando compêndios, livros e tratados, o que, de certo modo, deixou-o, num primeiro momento, menos perplexo porquanto diziam doutos e jurisconsultos que regra-condessa, portanto inferior, subalterna, submissa, dispensava a citada regra-rainha, pois regra da mais importante lei da Federação Ilhéu.

Mas, o que, no primeiro instante, pareceu atenuar a perplexidade do Mestre de Remo, potencializou-a no momento seguinte: se doutos e jurisconsultos afirmavam a superioridade incontestável da regra-rainha, como nenhuma palavra sobre ela dissera o decididor?!

No entanto, já ia tão longe a sensação de insanidade do Mestre de Remo, que, com o denodo dos loucos, ele foi em frente. E procura daqui, procura dali, procura acolá, encontrou decisão do Tribunal Mais Alto da Federação Ilhéu afirmando a desnecessidade de regra-condessa diante da realeza da dita regra-rainha. Descobriu também decisão do Tribunal do Recanto Jubiloso, e decisão que afirmava também que a regra-rainha discutida não precisava de regra-condessa para ser aplicada.

Ao descobrir tais decisões, o Mestre de Remo, em vez de sentir aquele arrefecimento da perplexidade que sentira quando encontrara apoio em doutos e jurisconsultos, sentiu-se definitivamente doido e passou a achar que tais decisões dos Tribunais eram mero fruto de sua loucura, pois nenhum decididor as desconheceria se realmente existissem!

Contudo, como maluco é assim mesmo, da decisão denegatória o Mestre de Remo recorreu.

Em seu recurso, alegou simplesmente que a regra-rainha – plenamente eficaz, como falavam doutos e jurisconsultos e tinham decidido o Tribunal Mais Alto da Federação Ilhéu e o Tribunal do Recanto Jubiloso – tornara absolutamente desnecessária qualquer regra-condessa específica, pois regra-súdita, regra-vassala, já que, precisamente em função do que determinava a peculiaríssima e súpera vontade da dita regra-rainha, aquela regra-condessa que concedia o abono a Mestres de Vela e de Navegação deveria ser lida como se dissesse:

- Têm direito ao abono... os Mestres de Vela, de Navegação e de Remo.

E, assim, estaria superada a argumentação da Administração do Recanto Jubiloso que afirmava necessária uma regra-condessa, pois a regra-condessa existia na legislação do Recanto Jubiloso, por expressa e clara determinação da regra-rainha, como acabou de ser mostrado!

E o Devido Trâmite foi adiante, e novamente uma negativa decisão surgiu e outra vez fundada na inexistência de regra-condessa específica!

E, outra vez, nem, ao menos, uma palavra sobre a razão que havia levado o decididor a considerar inútil, inservível, imprestável a regra-rainha!, mesmo sabendo que doutos e jurisconsultos consideram-na existente, válida e autoaplicável, mesmo sabendo que este também fora o entendimento do Tribunal Mais Alto da Federação Ilhéu e do Tribunal do Recanto Jubiloso!

A essa altura, já tinha terríveis pesadelos o Mestre de Remo e neles via a Condessa, aliás, as Condessas, que são muitas, coroadas todas e sentadas num trono grande o bastante para acomodar tantas bundas, e a pobre Rainha a se locomover de joelhos para beijar a mão de cada uma delas!

Em outros delírios, via a regra-rainha solta no ar, quase transparente, e ela lhe dizia:

- Sou regra-fantasma! Sou regra-fantasma!

E, entre a Rainha ajoelhada e a regra-fantasma, vagava a alma do Mestre de Remo. E chorava pela Rainha humilhada. E sentia calafrios pensando na regra-fantasma. E, nas ocasiões mais terríveis, via-se decididamente sacudido pelos decididores que lhe ordenavam que aprendesse a ler! E eram tão imensos os decididores que, com sua limitada visão, não lhes conseguia ver claramente as fisionomias o Mestre de Remo, e ficava aterrorizado!

Mas, mesmo em tão deplorável estado, conseguiu o Mestre de Remo encontrar forças para apelar para o Grupo Encarregado de Julgar Pedidos dos Empregados do Recanto Jubiloso, um órgão ligado à Administração do Recanto Jubiloso e por ela mantido, mas que, imaginava o Mestre de Remo, não permitiria que a Rainha continuasse ajoelhada nem que por aí perambulasse fantasmagoricamente regra dela.

Mas, para absoluta e total supresa do Mestre de Remo, já no Primeiro Subgrupo do aludido Grupo, rechaçou-se laconicamente seu pedido e, de novo, com base no mesmo argumento: “inexistência de regra-condessa conferindo a Mestre de Remo o abono”.

E, novamente, nem, ao menos, uma palavra sobre a razão que havia levado o Primeiro Sub-Grupo a considerar inútil, inservível, imprestável a regra-rainha!, mesmo sabendo que doutos e jurisconsultos consideram-na existente, válida e autoaplicável, mesmo sabendo que este também foi o entendimento do Tribunal Mais Alto da Federação Ilhéu e do Tribunal do Recanto Jubiloso!

Entretanto, o não unânime resultado do julgamento permitiu-lhe levar seu pedido ao Grupo Reunido, o segundo nível decisório do Grupo, e novamente foi o Mestre de Remo derrotado, e foi o mesmo o argumento: “inexistência de regra-condessa conferindo a Mestre de Remo o abono”.

E, de novo, nem, ao menos, uma palavra sobre a razão que havia levado o Grupo Reunido a considerar inútil, inservível, imprestável a regra-rainha!, mesmo sabendo que doutos e jurisconsultos consideram-na existente, válida e autoaplicável, mesmo sabendo que este também foi o entendimento do Tribunal Mais Alto da Federação Ilhéu e do Tribunal do Recanto Jubiloso!

Agora, já dilacerado e prestes a se convencer de que não é capaz de pensar, nem de ler, nem de argumentar, garatujou seu derradeiro recurso e, aos trancos e barrancos, entregou-o ao Chefe do Recanto Jubiloso, e, afogado em caudalosas erupções salivares espontâneas e incontroláveis, aguarda a decisão final!

E, ainda indeciso a respeito de sua capacidade para ler “O Processo”, decidiu ir ao pai-dos-burros para descobrir o significado do termo kafkiano, e descobriu o seguinte:
“kafkiano – que...evoca uma atmosfera de pesadelo, de absurdo, especialmente em um contexto burocrático que escapa a qualquer lógica ou racionalidade” (Houaiss)