quarta-feira, maio 18, 2005

Só na memória

Vi aquele casarão miríades de vezes, senti-me estranhamente ligado a ele em muitas e diferentes ocasiões, surpreendi-me admirando-o nos mais diversos e inesperados momentos, esquadrinhei-lhe a arquitetura em inúmeros, incontáveis momentos, preenchi inumeráveis vazios rabiscando traços esparsos e incoerentes em folhas de papel e, por fim, reparei que não eram esparsos nem incoerentes, mas algum detalhe da fachada do casarão que estava retido na minha memória: cor; o feitio das janelas; os dois balcões, mísulas e balaustradas; a estranha cornija, os relevos indecifráveis e os arabescos intrigantes; os três degraus que permitiam chegar à porta de entrada que ficava protegida pelo alpendre que, por sua vez, se apoiava em duas salomônicas e delgadas colunas com bases e capitéis suaves e a sóbria luminária que dele pendia, e porta feita de nobre madeira e com ferragens de estilo, fechadura, maçaneta, aldraba...

Se não era um casarão atípico, insólito, diferente de todos os demais, também não era igual, idêntico. Apesar de tantas similitudes com outros casarões, de tantos pontos em comum, tinha peculiaridades, sutilezas e nuances que o tornavam insondavelmente especial, e muito.

Vi sua fachada fustigada por raios de sol, açoitada pela chuva, imersa em noite espessa, e a vi sorrir como se percebesse a primavera, e a vi ficar hirta, tensa, como se a incomodasse o frio, e a vi iluminada e festiva, enlutada e chorosa, e a vi trajada de maneira singela e elegantemente vestida, e a vi mascarada e carnavalesca, e alegremente natalina...

Sempre, de algum modo, por algum ângulo, em algum sonho ou divagação, eu vi aquela fachada e estive à procura daquele casarão.

Indaguei muito aqui e ali, fiz perguntas aos mais antigos, compulsei textos e anotações sobre as histórias da cidade, e fui a becos, ruas e avenidas de muitos bairros onde casarões com aquela fachada podiam existir ou ter existido.

Busquei indícios e informações em arquivos públicos, escolas, bibliotecas, estúdios, ateliês, grêmios, galerias, escritórios, congregações, secretarias, templos, terreiros, consultórios, botecos, museus, jornais e até em prostíbulos. E consultei terapeutas, astrólogos, pais-de-santo, sacerdotes, médiuns, rabinos, imames, pajés. E recorri a bruxos, magos, feiticeiros, ciganas, mandingueiros, cartomantes, quiromantes, videntes.

Cheguei mesmo a contratar um desenhista e, baseado nas informações que lhe dei, ele fez um desenho aproximado da fachada, até bem aproximado, mas não um desenho perfeito porque algo faltava, e eu tinha certeza disso, mas nunca consegui dizer-lhe o que era.

Em muitas ocasiões, reuniões, eventos, cerimônias, palestras, exposições, congressos, bodas, aniversários, almoços, jantares, recitais, festas, festivais, apresentações, encenações, mostrei o desenho a muitas pessoas e das mais diversas condições sociais, e algumas, mesmo eu nada tendo dito, disseram que poderiam dizer-me que casarão era e onde ficava se estivesse no desenho aquilo que eu sabia que faltava mas não sabia dizer o que era.
Algum tempo depois, bastante, creio, lembrou uma fotografia daquele casarão que devia estar num velho álbum de família e procurei por todos os velhos álbuns, mas, estava vazio o espaço que devia estar ocupado pela foto.