quinta-feira, junho 30, 2005

Aconteceu com o Zé

O Zé é uma pessoa tipicamente comum, e este tipicamente comum é causa de tristeza e devia ser motivo de orgulho.
Já tem o Zé quase trinta anos; e mora bem longe, bem longe mesmo; e seu cafofo mereceria ser chamado de casa se estivesse situado numa rua asfaltada, se fosse, pelo menos, cinco ou seis vezes maior e dividido em cômodos adequados, se possuísse instalações sanitárias próprias, se recebesse satisfatoriamente água, luz e gás, e se dispusesse de outras coisas mais, por exemplo, camas, armários, mesa, geladeira e fogão que ao nome fizessem jus; e mora ele com a mãe, com três irmãos bem mais novos e com a avó; e é o Zé que sustenta essa família.
Para variar, estava o Zé desempregado e se virava como dava para se virar, um biscate aqui, outro ali, um emprego temporário aqui e ali, uma atividade autônoma acolá... O dia começando às 5 da manhã e acabando às 10 da noite... e de segunda a segunda...

Um domingo, como não arranjara nada para defender um dinheirinho, deu uma saída pelas redondezas para o de sempre: papo, pinga, talvez uma cervejinha, quiçá um churrasco em frente à birosca do Bambu.

Ao passar pela banca de jornal, viu que havia um ajuntamento maior do que o que normalmente se formava para ler o chamado jornal comunitário - o que fica pendurado na lateral da banca -, e foi conferir.

Era um anúncio de emprego, de um maravilhoso emprego, um emprego que seria maravilhoso mesmo se estivéssemos nadando em ofertas de excelentes empregos... Salário inicial ótimo - várias dezenas de salários mínimos -, casa, carro, cartão de crédito e um futuro sem limites.

Por aquelas bandas, todo mundo conhece todo mundo, e todo mundo sabia que o Zé, por ali, era o único que, com um baita esforço, tinha conseguido concluir a formação universitária na área mencionada no anúncio e, numa espécie de homenagem que só é prestada em bandas como aquela, e com a aquiescência do jornaleiro, deram-lhe a folha do jornal.

Sem dúvida, sentiu orgulho o Zé, mas, depois de tantas porradas que já levara da vida, não se animou muito!

Agradeceu, dobrou a folha, meteu-a no bolso da bermuda e foi ao domingo, arrastando os chinelos!

Lá pelas 4 da tarde, já bem mais pra lá do que pra cá, foi pra casa e desabou na cama, e só acordou na segunda, e já na hora de ir à luta, e foi...

Voltou na hora de costume, lá pelas 10 da noite e, quando chegou em casa, encontrou a mãe com a folha de jornal na mão. Ela havia dado a geral de sempre na bermuda dele e a havia encontrado, e o Zé já nem se lembrava mais do anúncio.

A mãe, que tinha mais orgulho do diploma universitário que ele conseguira do que ele próprio, havia lido a oferta de emprego com ajuda de uma vizinha que tinha “melhores óculos” e começou a incentivá-lo, e tanto o incentivou, que ele começou a pensar no assunto.

De fato, ele havia concluído o curso universitário que era requerido no anúncio, embora o tivesse feito numa faculdade não muito conhecida, ou melhor, desconhecida, e particular, porque, em razão de uma sutileza epidérmica, não conseguira se beneficiar da política de quotas, e o fizera no turno da noite, é verdade, mas, e daí?!, tinha o diploma com todos os registros e carimbos! Concluíra em 8 anos o que poderia ter sido feito em 4, é outra verdade!, mas, pudera!, trancara a matrícula várias vezes por um grande número de razões: falta de dinheiro para pagar a matrícula, falta de dinheiro para pagar a mensalidade, falta de dinheiro para pagar a condução, falta de dinheiro...

No que tange à boa experiência profissional exigida, bem, nesse campo, ele acreditava que ia se dar bem porque começara a trabalhar aos 12 anos e, nesses quase 18 anos de atividade contínua, já fora, por exemplo: engraxate, acrobata em sinal de trânsito, baleiro, bói, lavador de carro, flanelinha, motobói, vendedor ambulante, entregador de jornal, camelô, frentista de posto de gasolina, balconista, ajudante de cozinha, garçom, escriturário, supervisor de mercadinho, datilógrafo, digitador, empacotador, auxiliar de contabilidade, feirante, bancário, despachante em várias frentes, vigia, motorista de caminhão, almoxarife etc. etc. etc., e, ultimamente, vinha atuando como autônomo geral - ou seja, fazendo o que pintava -, e cria que não precisaria nem mencionar o tempo em que, no jogo do bicho, foi um bem-sucedido apontador - memória boa e bom nos cálculos -, porque, afinal de contas, era contravenção...

Quanto aos demais itens, por exemplo, capacidade para motivar, organizar e liderar, sua bagagem também era respeitável: conseguia manter-se motivado ainda apesar de tudo; organizava as festas das cercanias, e com razoável sucesso; e liderava o time de futebol da sua rua há 8 anos, e vinha conquistando títulos ou boas colocações...

Até aprendera a usar o computador, e bem, pois, como era muito sagaz, não ficou, no jogo do bicho, muito tempo como apontador, foi levado rapidamente para o escritório onde era feita a apuração e aprendeu a lidar com aquele ícone do mundo moderno, e se tornou o bambambã da planilha informatizada.

Vencida esta preliminar avaliação, e tendo concluído que também falaria da boa memória, da aptidão para fazer cálculos e da habilidade para montar planilhas com os mais modernos processadores mas sem mencionar o jogo do bicho, sentiu-se motivado e resolveu manuscrever seu currículo.

Após aprontá-lo, deixou-o com a mãe para que ela o entregasse à Nilma - a única vizinha que trabalhava em empresa que tinha computador - que, com certeza, o datilografiaria a capricho.

Uns três dias depois, trouxe a Nilma o currículo impecavelmente datilografado numa branquíssima folha de papel e com um tipo de letra que você só encontra em processador de texto de boa qualidade, e até um pouco fresca a letra, na avaliação do Zé, mas cavalo dado... e ela trouxera até o envelope e se oferecera para levá-lo à agência dos Correios, depois que ele assinasse devidamente a carta que encaminharia o currículo e anexasse cópia dos documentos solicitados, e assim foi feito.

O Zé foi em frente, quer dizer, foi pra lá, foi pra cá, correndo atrás do dinheiro do aluguel, do das compras, do da condução etc. etc. etc., e com tão pouco tempo para pensar, acabou esquecendo o tal maravilhoso emprego que ocupara seus sonhos por algumas noites...

Oito ou nove meses depois, chegava em casa o Zé, e na hora habitual, quando viu aquela pequena multidão na sua porta. O susto foi enorme porque, por ali, só se formava um enxame assim em pagode ou quando algo ruim havia acontecido, e não era dia de pagode... E ele deu uma corrida... Mas, quando chegou mais perto, começou a perceber que o clima era de festa e, conquanto tenha achado estranho já que não era dia disso, respirou aliviado e viu sua mãe no meio da galera e rindo com todos os dentes que ainda tinha...

O que teria acontecido?

Quando a turma viu o Zé, a ovação foi comparável a que, nos bons tempos, recebia time grande quando entrava em campo no Marcanã!

O Zé não entendeu nada, e levou um bom tempo sendo abraçado pelos homens e beijado pelas mulheres... e chegou a ser carregado nos ombros de alguns amigos...

Quando se livrou daquele aplauso todo, viu a mãe acenando para ele com um chiquíssimo envelope na mão... e perguntou o que era...

A essa altura o coro já era ensurdecedor:
- Abre! Abre! Abre!

E o Zé o abriu.

Tratava-se de um convite.

A empresa a qual remetera seu currículo, aquela tal que ofececera o maravilhoso emprego, o chamava para uma entrevista, e a última etapa do processo de seleção, pois ele ficara no pequeníssimo grupo de escolhidos após uma extensa e criteriosa verificação de cada currículo enviado, e, caso ainda estivesse interessado, deveria comparecer na semana seguinte, e havia dia e hora já marcados...

Como eu disse, o clima era de pagode, e, assim que a leitura da carta acabou, chegou a primeira cerveja e já veio no ponto, a churrasqueira pediu passagem e trouxe junto o carvão que vinha doido pra pegar fogo, e pegou!, a carne não podia ficar longe daquele calor, e não ficou, um pedaço daqui, outro dali, e a união fez a força, o cavaco foi o primeiro falar, e depois falaram surdo, bumbo, cuíca, pandeiro, e, daí pra frente, a farra engrenou...

O dia seguinte, foi de ressaca... o Zé não acordava tão tarde, num dia semana, há muito tempo...

E nem bem havia acordado, já o incomodou o primeiro problema: como é que ele ia a tal entrevista se não tinha sequer um traje minimamente adequado?!

Mas a solidariedade resolveu a questão, que por aquelas bandas a solidariedade é uma das pouquíssimas coisa boas que existem: paletó de um, camisa de outro, gravata de um terceiro e assim por diante, e como manequim de pobre é mais ou menos o mesmo – outra coisa razoavelmente boa que há por aquelas bandas -, a indumentária já existia; e até uma vaquinha antecipada para o dinheiro da passagem se fez...

A rua toda passou praticamente uma semana sem dormir, e o churrasco, a cerveja e o pagode irrompiam a qualquer momento, e merecidamente, afinal, nunca dantes um filho da localidade recebera tão importante chamado!

No dia marcado, às 5 horas da manhã, após o desjejum, aquele gole de café magro e solteiro, e motivado pela galera que passara a noite na sua porta para lhe dar um bom incentivo, lá foi o Zé, pois a entrevista seria às 9 horas, e ele ia precisar pegar 3 ou 4 conduções.

Praticamente às 9 horas, chegou o Zé ao prédio da empresa, e pela primeira vez na vida teve um contato físico e imediato com o luxo, concluiu até que, se o luxo tivesse um símbolo, seria aquele prédio. Pensou em desistir, mas, como não era de botar galho dentro, foi em frente, e entrou.

Quando deu de cara com o imponente porteiro, não conseguiu deixar de dizer pra si mesmo: “Esse cara me dá de dez a zero!”; mas, ao ver-lhe a carta, desmanchou-se em gentileza o garboso representante da portaria e o levou ao elevador, indicando-lhe o andar.

Nunca havia entrado em um avião o Zé, mas era um cara informado, e sabia que havia até primeira classe, e concluiu que a melhor primeira classe do melhor avião devia ser como aquele elevador...

Quando chegou ao seu destino, constatou o Zé que tudo que vira até então não era requintado, pois fausto era o que havia naquele andar... Sem falar na moça monumental que estava na recepção, e até riu interiormente da galera lá da sua rua que achava bonita as mulheres que apareciam na televisão, eles não sabiam o que era mulher bonita, e gostosa, e cheirosa...

O monumento, sorrindo femininamente, disse-lhe:
- Por favor, seu José, venha comigo!

E o Zé, depois de gastar alguns segundos para descobrir que ele era o tal 'seu José', acompanhou-a e foi parar numa sala de espera onde estavam os outros poucos candidatos que tinham sido selecionados.

Mais uma vez, reformulado precisou ser o conceito de ostentação do Zé, pois aquela sala é que era verdadeiramente suntuosa e, além disso, abastada, visto que, sobre uma soberba mesa, havia doces, biscoitos, salgadinhos feitos com pequenas fatias de pão – que ele sabia que tinham outro nome por ali mas não lembrava qual era! -, e havia ainda refrigerantes, sucos, água, chocolate e café.
Movido pela necessidade, nem reparou no resto o Zé e à mesa foi logo, e fartou-se, e pela primeira vez na vida achou que estava tomando um verdadeiro café-da-manhã...

Findo o banquete, reparou que havia uma poltrona vazia, a sua, e compreendeu que nunca vira antes uma poltrona... e sentou-se... e olhou ao redor...
Ninguém havia olhado pra ele e ninguém o olhava agora: um lia um livro que parecia muito importante; outro falava num telefone celular e, em outro, via alguma mensagem; um terceiro tinha nas mãos um jornal escrito em inglês e dele não tirava os olhos; e havia mais outras duas pessoas igualmente ocupadas...

Se bem que não fosse um especialista em vestimenta, não era tolo o Zé, e, depois da rápida olhada em volta que deu, chegou a uma ilação: a gravata mais barata, tirando a dele, devia ter custado uns 3 ou 4 salários mínimos...

Surpreendentemente, tal conclusão o não abateu porque, no seu íntimo, sabia o Zé que já estava no lucro: a sala, o ar condicionado, a poltrona, o garçom que entrava e saía para não deixar a mesa desafalcada etc. etc. etc.

O Zé fora o último a chegar, também, ninguém mais ali precisara pegar três conduções, e já sabia que as entrevistas iam respeitar a ordem de chegada dos candidatos... Mas... tudo bem...

Quando uma outra moça da empresa entrou na sala para levar o primeiro candidato à entrevista, não pôde fugir o Zé de uma nova revisão nos seus conceitos: monumental era essa mulher e não a outra, a da recepção...

E os candidatos foram entrando imponentes, confiantes, e, após um período de tempo significativo, saindo triunfantes!

E foram as horas transcorrendo, e o Zé estava tão bem alimentado e se sentia tão recompensado só por estar ali que até deu uma cochilada, e foi acordado pela suave mão do verdadeiro momunento que lhe disse:
- Seu José, é a sua vez. Acompanhe-me, por favor.

Vencido o susto do despertar, ergueu-se o Zé, aprumou-se, endireitou a gravata e foi, e até se lembrou de uma frase que lhe ensinara um velho lá da sua rua e que ele nunca mais esquecera: “alea jacta est!”, e repetiu-a baixinho para si mesmo e em português: “a sorte está lançada!”.

Quando entrou na nova sala, nova reformulação conceitual teve de fazer o Zé, pois suntuosidade, com efeito, existia ali e o cara que estava sentado atrás daquela Mesa, com maiúscula mesmo!, não era o dono de tudo aquilo, devia ser o “chefe do dono”!

A essa altura, no piloto automático já estava o Zé e, quando lhe ofereceu o “chefe do dono” uma das poltronas que estavam diante da Mesa, além de descobrir que poltrona era aquilo e não aquela outra onde estivera sentado, ele acomodou-se mecanicamente.

E o “chefe do dono” fez-lhe logo uma pergunta:
- Seu José, se o senhor precissasse roubar algo de alguém amanhã e necessitasse de uma pessoa para auxiliá-lo e só duas pessoas disponíveis estivessem: o João Gatuno, ladrão competente e afamado, e o Antônio Filantropia, conhecidíssimo por sua alma boa, por sua honestidade; quem o senhor chamaria?

Um silêncio maior do que todas as necessidades que o Zé tão bem conhecia desabou sobre ele, e, no segundo que se seguiu, milhões de coisas passaram por sua cabeça, mais uma sobressaía, como se fosse um letreiro de neon que não parava de piscar: “QUE SACANAGEM!... QUE SACANAGEM!...”, e nos intervalos do neon: "Esse merda deve ter feito perguntas fanásticas aos outros candidatos e, na minha vez, vem com essa...", e outra vez: “QUE SACANAGEM!... QUE SACANAGEM!... QUE SACANAGEM!...”

Mas não era o Zé de vacilar, de perder a pose, nem de botar o galho dentro, como já disse. Ato contínuo, pôs-se de pé diante do “chefe do dono” e, já olhando para ele de igual para igual, falou:
- Agradeço-lhe, doutor, o convite que a empresa me fez e a atenção que o senhor me concedeu, e não vou enganá-lo de maneira nenhuma: “Chamava o João Gatuno, doutor”. Boa tarde.

E deu às costas ao “chefe do dono” e andou em direção à porta do salão.

Estava quase chegando, quando o chamou o “chefe do dono”:
- Seu José...

O Zé parou e pensou por um segundo novamente e chegou à seguinte conclusão: “esse puto vai me dar uma lição de moral ou um esporro e eu vou mandá-lo tomar no cu”, e virou-se para o “chefe do dono” e olhou-o com um olhar que já era de desafio...

E o “chefe do dono” prosseguiu:
- Seu José, parabéns, caso ainda queira o emprego, o senhor está contratado!

O Zé quase desabou e só não se mijou todo porque conseguiu enfiar rapidamente a mão esquerda no bolso da calça e conter a enxurrada... mas sentia que ia acabar ficando de cócoras na fente do “chefe do dono”... entretanto, tirou forças não sabe nem de onde, e perguntou, aliás, balbuciou um princípio de pergunta:
- E...u...

E o “chefe do dono” tornou a dizer:
- Seu José, caso ainda queira o emprego, o senhor está contratado! parabéns!
Então, após pequena pausa, foi adiante:
- Eu fiz esta mesma pergunta a todos os outros candidatos, e ouvi pungentes, eruditos e até dramáticos discursos sobre princípios éticos e morais, e senti-me mesmo um pouco ofendido ao pensar que aqueles respondedores - ou melhor, oradores - estavam achando que eu não lia jornal e, por conseguinte, não sabia das trapaças que acontecem por esse mundo, apesar das belas falas pretéritas de muitos trapaceiros, o que nos dá uma boa idéia sobre o ser humano, e, pior, bem pior, seu José, deviam estar cogitando que nem a transmissão de jogo de futebol pela televisão eu assistia, ou seja, que eu nem sabia que há jogador que, diante de milhões de telespectadores, entra no adversário e quase o racha ao meio... e, quando lhe mostra o juiz o cartão, faz cara de vítima e jura que não fez nada... Se um ser humano nega um ato testemunhado por milhões de pessoas, e, ainda por cima, gravado, como é que puderam imaginar esses senhores que eu me ia fiar em meia dúzias de palavras particularmente proferidas com o intento de enaltecer as condições éticas e morais de quem as proferia... Caráter e honestidade, seu José, avaliam-se diariamente e pela vida toda, e, mesmo assim, muitas e muitas vezes, só um dia depois de todo esse tempo descobre-se a verdade...
E, depois de mais uma estratégica parada, finalizou:
- E mais, seu José, com essa pergunta, eu só queria avaliar a sinceridade e a objetividade de cada candidato, e o senhor foi objetivo, e foi o único, e me pareceu absolutamente sincero! Parabéns, seu José!