quarta-feira, maio 11, 2005

Que filme!

Nunca um filme tinha sido tão falado, tão badalado, aliás, badaladíssimo...

Todo mundo falava dele, e só maravilhas... fenomenal, genial, sensacional, profundo, instigante, questionador, desafiador, incomparável... e super... e hiper... e ultra... filme do ano e da década e do século e do milênio...
E falavam dele os jornais, as revistas, as emissoras de rádio e tevê, em todas as edições e horários.
E falavam dele crianças, jovens, adultos e anciãos.

Fui ao banco e, na fila, estavam falando do filme.

No a quilo, estavam falando do filme.

Parei pra tomar um café e a moça do balcão puxou papo e me perguntou se eu já havia visto o filme...

Liguei pro telessexo pra desanuviar a cabeça e a mensagem gravada falava do filme e informava que as atendentes sexuais estavam de folga, tinham, mais uma vez, ido ver o filme.

No horário nobre da tevê, apareceu o Presidente, tinha um mensagem à Nação e era sobre o filme, e já apareceu com os olhos cheios de admiração, e estavam assim todos os Ministros, Secretários, Adjuntos etc. etc. etc.

Bem, resolvi me refugiar no boteco, minha ilha de tranqüilidade, e, assim que cheguei, me enchi de espanto, o boteco estava fechado e com aquele papel pregado na porta... Pensei logo que o António, que nos últimos quarenta e tantos anos nunca fechara aquela merda, tinha morrido de uma crise agudíssima de avareza, mas, que surpresa!, ele havia levado a Joaquina pra ver o filme...

Resolvi andar a esmo, e passou uma senhora falando sozinha sobre o filme, e o mendigo da esquina pediu um trocado pra poder ir ver o filme, e o pivete desbocado, deseducado, desprezado, pulava, palhaçava e gritava: “o filme é bom pra caralho... o filme é bom pra caralho...”

Já era noite, então, decidi ir à praia que, com aquela chuva fina, devia estar vazia, e estava, somente um casal aproveitava a solidão, e fui pra bem longe pra não pertubar, mas, pra meu espanto, em poucos segundos, estava o casal na minha frente e perguntando se eu já havia visto o filme...

Fugi dali desesperadamente e decidido a ir ver o filme, mas, como você sabe, não há mais cinemas espalhados pela cidade, agora, pra encontrar um, é preciso consultar um bom mapa... então, achei melhor pegar um táxi e o motorista nem me deixou dizer pra onde eu ia, desatou a falar sobre o filme.

Aquilo me deixou tão constrangido que, no primeiro sinal fechado, abri a porta e saí correndo, mas o policial me viu e correu atrás de mim e, com esse meu estupendo preparo físico, cem metros em duas horas e trinta e seis minutos, foi fácil me alcançar e, tão logo pôs as mãos em cima de mim, me perguntou se eu estava correndo pra ver o filme...

Não sabia mais o que fazer e, como um louco, saí perambulando pela cidade e encontrei uma fila, era fila pra pegar senha pra entrar na fila de espera de um lugar na fila da bilheteria que vendia os ingressos do filme, e todos nessa fila já tinham visto o filme várias vezes.
Consegui uma senha umas cinco horas depois.
Umas dezoito horas depois, consegui entrar na fila de espera.
Mais onze ou doze hora, ingressei na fila da bilheteria.
Mais algumas horas, e comprei o ingresso pra sessão das dez da noite, e fui direto pra fila de entrada, e eram ainda dez horas da manhã...

Face à multidão que queria entrar e à que saía a cada fim de sessão, o tumulto era cinematográfico e os policiais que tentavam organizar aquele caos desciam o cassetete e falavam sobre o filme...

Finalmente, às quatro e quinze da madrugada do dia seguinte, consegui entrar no cinema, literalmente carregado pela multidão.

As luzes da sala de projeção estavam acesas e, quando a minha multidão chegou lá, outra multidão já ocupava todos os espaços.

O que parecia o anúncio de um tumulto indescritível, tornou-se um espetáculo intraduzível, pois, à proporção que as luzes iam perdendo intensidade (ainda acontece isso nos cinemas hoje em dia?!), a escuridão e o silêncio iam se abatendo sobre as duas multidões, e quando o breu tornou-se pleno, não havia mais nenhum som.

E, a cada segundo que passava, o impossível acontecia, a escuridão era mais escura, mais silente o silêncio... não se ouvia nem se via nada, nada, absolutamente nada... e, no instante seguinte, menos ainda... e bem menos ainda um momento depois... e ainda muito menos um átimo após, e, sucessiva, consecutiva, contínua, ininterruptamente, foi assim até o fim.

Que filme!